RESGATE DA MEMÓRIA RURAL ALDEENSE – A VENERÁVEL IRMANDADE DO SANTÍSSIMO SACRAMENTO E O SEU CEMITÉRIO

HISTORIA SÃO PEDRO REGIÃO DOS LAGOS SÃO PEDRO DA ALDEIA SÃO PEDRO DA ALDEIA

Por Geraldo Luiz Ferreira

Foto Elizabeth Franco

 

HISTÓRICO

As terras do município de São Pedro da Aldeia correspondem, aproximadamente, à sesmaria doada pelo Capitão-mor de Cabo Frio aos indígenas trazidos do Espírito Santo pelos padres jesuítas, em 1617.

IRMANDADE DO SANTÍSSIMO SACRAMENTO E O SEU CEMITÉRIO SÃO PEDRO DA ALDEIA
Foto: Elizabeth Franco

Nas terras foi edificada uma aldeia, com a dupla finalidade de defender a recém fundada cidade de Cabo Frio, de piratas que a freqüentavam periodicamente na busca de pau brasil, e catequizar as diversas nações indígenas que habitavam entre o litoral e o rio Paraíba e o seu sertão, principalmente os temíveis Goitacá.

Com o aumento da população da cidade de Cabo Frio e a conseqüente necessidade de terras para a agricultura e para a pecuária, a Conservatória dos Índios, órgão da organização judiciária encarregado da tutela dos indígenas, principalmente após a criação da Lei de Terras de 1850, passou a aforar terras da sesmaria dos indígenas aos homens brancos. A receita gerada pelo pagamento dos foros deveria ser aplicada na conservação da igreja e no pagamento de pensões a indígenas idosos e inválidos.

Saint Hilaire, que visitou a Aldêa em 1818, com a argúcia e o espírito crítico que o caracterizavam, nos relata a sua percepção e os problemas potenciais que antevia com a aplicação dessa prática: “Uma vasta extensão de terra, de que uma parte ainda se acha em mata virgem foi anexada à comunidade da aldeia e o território concedido foi declarado inalienável…. É igualmente permitido conceder terras aos homens brancos; mas estes são arrendatários e pagam à comunidade da aldeia a taxa de um tostão por braça…..Observei que se se não modificar o regulamento atualmente em vigor, e se se deixar persistir os odiosos abusos aí introduzidos, o território dos índios, por inalienável que seja, passará pouco a pouco às mãos dos brancos”.

Saint Hilaire nos informa também que “As casas, todas de madeira e barro, foram construídas com pouca arte; são cobertas de colmos e na maioria destituídas de janelas”.

Em 1840, apenas doze anos após a visita do sábio francês, já era grande o número de homens brancos habitando na Aldêa de Sam Pedro, até mesmo na área urbana onde, inclusive, começavam a construir suas residências com pedra e cal, em substituição às toscas choupanas dos indígenas.

Convém ressaltar nessa oportunidade que, com o aumento da população de homens brancos nas terras indígenas, passaram a ser comuns os casamentos entre as duas etnias e, como conseqüência desse processo, os indígenas foram “aculturados” e “confundidos na massa geral da população” criando com isso as condições para a aplicação da Lei de Terras de 1850, que extinguiu o regime das sesmarias.

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A IRMANDADE DO SANTÍSSIMO SACRAMENTO

No dia 2 de fevereiro de 1840, um grupo de homens brancos de religião católica, se reúne para fundar a Irmandade do Santíssimo Sacramento, cuja ata de fundação passamos a transcrever:

“Aos dois dias do mez de Fevereiro do anno do Nascimento de Nosso Senhor Jezus Christo de mil oitocentos e quarenta, n”esta Freguezia da Aldêa de Sam Pedro, e corpo da Igreja Matriz, estando ahi prezentes os Cidadãos abaixo assignados, congregados com o fim de examinarem, discutirem e approvarem o Projecto de Compromisso. Redigido e appresentado pellos Cidadãos para isso encarregados Manoel José Gomes Pereira de Macedo e Antonio Francisco dos Santos, no qual se estabelecem as formas porque hade ser regida a Irmandade do Santíssimo Sacramento, da qual todos desejão fazer parte: e sendo em segunda leitura discutido o referido Projecto, foi elle approvado em todos os seus artigos, para que ficasse sendo o Compromisso da Irmandade, e como lei obrigasse a todos os Irmãos. Outro sim se rezolveu que às Authoridades competentes se sollicitasse e agenciasse a sua approvação, e depois da qual se mandassem imprimir 500 exemplares para serem destribuidos convenientemente pelos Irmãos, isto à custo da Irmandade, quando o seu estado de finanças o permitta ou por meio de subscripção agenciada pelos Irmãos ou fieis que para Ella quizerem voluntariamente concorrer. E de como assim se accordou e rezolveu, eu Manoel José Gomes Pereira de Macedo, Secretario ad hoc lavrei este auto solemne que assignei com os de mais Cidadãos: O vigário Manoel Luiz Gomes, Antonio Machado Teixeira, Silvestre Machado de Azevedo, Manoel de…..Teixeira, Manoel Pedro dos Santos, José Lopes de Azevedo, Marcellino José de Figueiredo, Feliciano Gonçalves Negreiros, Domingos Alves Morão, Miguel José dos Santos, Manoel…..Leal, Antonio dos Santos Lima, Antonio de Brito, Antonio Gonçalves Marques, Antonio Leandro da Cunha, a rogo de Antonio Lobo Junior, Antonio Leandro da Cunha, Antonio Francisco dos Santos, Miguel Alves Pinheiro, Manoel José Gomes Pereira de Macedo, José Teixeira Marinho de Sampayo, Miguel José dos Santos Junior, Joaquim Rodriguez Peixoto, Antonio…..Penna, Pedro Luiz de Souza, Antonio José de Souza Ramos, Francisco Antonio Cantarino, Francisco Gonçalves Marques, Antonio Jozé Valente, Bento José de Souza Vellozo, Joaquim Muniz de………., João Francisco de Mendonça, Aleixo Manoel Quintanilha, Sebastião…………… . “
Quando realizamos essa pesquisa, há cerca de 50 anos atrás, não conseguimos localizar um exemplar desse primeiro Compromisso, porém tivemos acesso a um novo Compromisso da Irmandade, aprovado em 1862, e constatamos que era composto dos seguintes Capítulos:

COMPROMISSO DE 1862

Capítulo 1.0 – Da Venerável Irmandade em Geral
Capítulo 2.0 – Do Governo e Administração desta Venerável Irmandade
Capítulo 3.0 – Do Provedor, Officiaes da Meza, Difinidores e Zelador. Da Provedora, Vigaria do Culto Divino e Zeladoras, e do Andador
Capitulo 4.0 – Das Eleições
Capitulo 5.0 – Das Mezas Conjuntas
Capitulo 6.0 – Disposições Geraes .
Desse Compromisso destacamos:
Artigo 2.0 Podem fazer parte desta Venerável Irmandade todas as pessoas de um e outro sexo, contanto que sejão catholicos, maiores de 12 annos, de bons costumes e que gozem de liberdade.
Artigo 10.0 O governo administrativo desta Veneravel Irmandade é confiado a uma Meza eleita annualmente no dia da Ascenção do Senhor, composta de um Provedor, um Secretario, um Thesoureiro, um Procurador, doze Difinidores, e um Zelador.
Ë importante destacar que tive acesso a um documento/processo, de meados do século XIX, que justificava o acréscimo do qualificativo de “Venerável” ao nome da Irmandade, daí o Compromisso de 1862 a ela se referir como Venerável Irmandade do Santíssimo Sacramento.

A CONSTRUÇÃO DO CEMITÉRIO DA IRMANDADE

IRMANDADE DO SANTÍSSIMO SACRAMENTO E O SEU CEMITÉRIO SÃO PEDRO DA ALDEIA  1

Foto: Elizabeth Franco

Segundo o Almanak Laemert, relativo a 1854, “o pitoresco arraial d`aldêa vai n”um crescimento extraordinário; ali se vão edificando belíssimas casas nobres, e se acha em bom andamento uma obra, que, em relação ao lugar, se pode dizer monumentosa; talvez, nesse gênero, a primeira da província, senão do Imperio exceptuando a corte; um edifício, dizemos, digno da civilização, e que caracteriza o animo eminentemente christão dos Aldêenses: o falamos da obra para o cemitério dos irmãos do Santissimo Sacramento, feito a expensas de uma subscripção agenciada por entre os irmãos e fieis da freguesia, que subio a 9:000$ de réis, e cuja cifra deverá crescer, porque não chegarão nem 12:000$ para o seu acabamento, apezar do donativo de muitos materiaes, como por exemplo a pedra do desmoronado convento dos Jesuitas, que lhe foi doada pelo governo geral e provincial. Este importante edifício, de uma construção que zombará dos séculos, ocupa uma área de 200 palmos em quadra pouco mais ou menos, com quatro ordens de catacumbas. É diretor desta obra o habilíssimo mestre pedreiro, IGNACIO PEREIRA DIAS, que em riscos desta natureza não cede ao melhor engenheiro, principalmente depois que praticou com o distincto major Bellegarde, nas obras de S. Isabel da Caridade e do Pharol do Cabo.”

Através de pesquisa no Livro da Receita e da Despesa da Irmandade, relativo ao período de 1850 a 1868, encontramos lançamentos, a partir do dia 30 de maio de 1850, com despesas de construção do cemitério da confraria, entre os quais destacamos:

* 30 de maio de 1850: Ao pedreiro pela pedra 1ª. do cemitério 12$000
* 21 de setembro de 1850: A Joaquim Dias Garcia por 1000 telhas para o cemitério 30$000
* 7 de outubro de 1850: A um pedreiro para tapar uma catacumba $480
* 14 de novembro de 1850: A João Gomes Braga por um triangulo de madeira para o dia de collocação da 1.a pedra do cemitério: $480
*17 de junho de 1851: Ao irmão José Lopes d”Azevedo por conta das catacumbas em diversas datas como consta dos recibos: 265$225
*22 de julho de 1851: Dinheiro ao Irmão João Luiz Coelho pelas 15 catacumbas 286$328
*11 de agosto de 1851: Dinheiro ao Irmão José Lopes d”Azevedo por saldo das catacumbas que mandou fazer 42$244
*11 de agosto de 1851: Dinheiro por 500 tijolos para feichar catacumbas 10$000
*24 de abril de 1852: 5 catacumbas feitas por João Luiz Coelho d”Almeida 100$000
*30 de outubro de 1653: Pelo custo da tapagem de 19 catacumbas e por numerar 38 dittas 16$460

Em relação à planta da obra do cemitério, observamos que houve a preocupação de aproveitar as construções já existentes, a saber, a igreja e o convento-residência dos padres jesuítas, e fechar a quadra. Com isso o campo-santo passou a integrar o conjunto arquitetônico, dando-lhe a forma que atualmente possui.

Além de 108 catacumbas e 72 ossários construídos ao longo dos dois paredões laterais e do paredão aos fundos, a parte central do terreno é ocupada por “carneiros” e jazigos de mármore, na sua maioria produzidos ainda no século XIX em Lisboa. São dignos de destaque os jazigos das seguintes famílias: Manoel Jose Gomes Pereira de Macedo, Felipe Lopes, Comendador Manoel de Souza Teixeira, Pedro Luiz de Souza, Cesário Pinto Pereira, Manoel Ferreira Ramos Toucinho, Antonio Alves de Amorim Vianna, Feliciano Gonçalves Negreiros, Miguel Rodrigues da Cunha, Miguel Jose dos Santos, sendo que na base dos três últimos foi gravado “Fez Fran.co de Salles, Largo de São Julião Lxa. (abreviatura de Lisboa).

Por razões que não conseguimos levantar na nossa pesquisa, a Irmandade encerrou suas atividades e foi extinta em data desconhecida, até que em 1940 o aldeense João Batista Torres, funcionário público que trabalhou como secretário no Colégio Pedro II, ao aposentar-se, tomou a decisão de recriar a Irmandade à qual estava ligado por fortes laços de família uma vez que seu pai havia ocupado em 1863 o cargo de Juiz, posição da maior importância na confraria. A iniciativa foi amplamente acolhida pela sociedade aldeense e, em seguida, colocada em prática.

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Foto: Elizabeth Franco

O COMPROMISSO DE 1940

O Compromisso de 1940, do qual possuímos um exemplar, é composto dos seguintes capítulos:

* Capítulo I – Da Irmandade
* Capítulo I I– Do Patrimonio e da Renda da Irmandade
* Capítulo I II– Dos Irmãos em Geral e das Pessoas
* Capítulo I V– Da Administração da Irmandade
* Capítulo V– Da Assembléia Geral
* Capítulo V I– Dos deveres dos Irmãos
* Capítulo VI I– Dos Direitos dos Irmãos
* Capítulo VII I– Das Atribuições dos membros da Mesa
* Capítulo I X– Do Irmão Provedor Honorário
* Capítulo X – Do Irmão Vice-Provedor
* Capítulo X I– Do Irmão Secretario
* Capítulo XII – Do Irmão Segundo Secretario
* Capítulo X III– Do Irmão Tesoureiro
* Capítulo X IV – Do Irmão Procurador
* Capítulo X V– Dos Zeladores em Geral
* Capítulo X VI– Disposições Gerais
* Capítulo X VII– Disposições Transitórias

Deste Compromisso é digno de destaque o seu ART. 1.0, segundo o qual, “A Veneravel Irmandade do Santissimo Sacramento da Paroquia de São Pedro d”Aldeia, Estado do Rio de Janeiro, ordenada em 2 de Fevereiro de 1840, que terá sempre a SUA SEDE na mesma Paroquia, é uma Associação Religiosa e também BENEFICENTE, composta de ilimitado numero de pessoas de ambos os sexos, possuidoras de bons costumes e que professem a Religião Catolica, sem nenhuma ligação a qualquer corporação, seita ou coisa equivalente condenadas ou reprovadas pela igreja, continuará com a mesma denominação – VENERAVEL IRMANDADE DO SANTISSIMO SACRAMENTO DE SÃO PEDRO D”ALDEIA, tendo como FIM:
# 1.0 – Render Culto de modo muito especial, ao Santissimo Sacramento.
# 2.0 – Prestar a seus irmãos, todos os socorros Espirituais de que careçam e bem assim, assistência social aos que, pelo seu estado de reconhecida pobreza, irmãos ou não, dela necessitem”.

Convém destacar que, como fica evidente pelo conteúdo do Compromisso, um dos objetivos mais importantes dessa nova fase da Irmandade era a assistência social. A Irmandade arrecadou fundos e adquiriu uma propriedade na qual instalou um ambulatório para assistência médica e odontológica à população de baixa renda, o qual funcionou por muitos anos. Além disso, também proporcionava os medicamentos necessários, seja através de amostras grátis obtidas em laboratórios farmacêuticos, seja através de aquisição nas farmácias locais.

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Foto: Elizabeth Franco

O ESTADO ATUAL E O GRANDE DESAFIO

Após funcionar, nessa nova fase, por quase meio século, em seguida à morte de João Torres, seu grande líder e entusiasta, na década de 1980, a Irmandade uma vez mais entrou num processo de hibernação e acabou por encerrar as suas atividades. O patrimônio da Irmandade, de acordo com o seu Compromisso, reverteu para a Igreja e, hoje esse legado está representado no imóvel onde está localizado o Colégio da Missão de São Pedro, a Casa Paroquial e o terreno que lhe é contíguo.

Instituição centenária, que com elevada dose de apoio e solidariedade cristã tanto fez pela nossa terra, e à qual estiveram ligados os nossos antepassados, é um patrimônio cultural que não pode ser relegado ao esquecimento e está a exigir das novas gerações de aldeenses ações concretas e urgentes no sentido do seu resgate.

Fonte RESGATE DA MEMÓRIA RURAL ALDEENSE – RJ/2014 – 2016

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