Aproveitando o frescor da data em que comemoramos este sentimento nobre, venho trazer esta questão capciosa: pode a boa amizade substituir um trabalho psicoterápico? Eu poderia aqui já trazer taxativamente a resposta, mas quero levar o leitor a chegar às suas próprias conclusões. Para este trabalho, é necessário assinalar as diferenças entre amizade e psicoterapia. Amizade é, resumidamente, uma simpatia e afeição recíprocas, um vínculo cerrado tão intimamente que as almas acabam por se condensar em uma só, união esta feita a partir de uma experiência, objetivo de vida ou de valores em comum.
Um dos maiores desafios do ser humano é manter estas amizades até o fim dos dias. Os seus interesses e visão de mundo vão mudando conforme as experiências, forçando-o a assumir outras posições, a fazer escolhas decisivas. Tenho a sorte de manter amizades desde a infância, e talvez eu atribua isto a uma dádiva da vida: o próprio fluxo da existência acaba por deslocar a energia investida num contrato de lealdade inicial, onde a lei maior pode padecer de falta de escrúpulos, e de um momento para outro, transmutar de amor para ódio eterno.
Não raro, verificamos nas amizades o que é chamado de confluência, ou seja, uma intensa identificação com o outro ou com o ambiente que cerca o indivíduo, provocando a tal fusão que eu citei anteriormente. Até certo ponto, podemos classificá-la de sadia se os vínculos entre as pessoas alimentam-nas e as fazem desenvolver, sem nenhum rastro de qualquer dependência psicológica incapacitante.
O inconveniente desta natureza simbiótica reside no fato de que o sujeito fica impedido de perceber-se em seu mundo interno, uma vez que dois amigos partilham de um mesmo sentir, ou citando Aristóteles, “amigo é uma alma habitando dois corpos”. O juízo a respeito de uma determinada questão existencial fica seriamente comprometido, por mais que a amizade tenha a melhor das intenções. Indo aos extremos desta total identificação afetiva com alguma figura humana em especial, testemunhamos todos os dias, mesmo nas mínimas ações, intolerância das mais diversas ordens à singularidade do outro, com o despertar de ódio, perseguições e violências. Independentemente do modo e intensidade como esta fusão aconteceu, fato é que o próprio indivíduo não pode vivenciar-se a si mesmo, uma vez que ele perdeu todo o sentido de si: não sabe quem é, nem pra onde vai, tampouco o que o faz ser um ser singular e com necessidades só suas.
É neste ponto em que se faz crucial e distintiva a presença de um terapeuta – para trazer este sujeito de volta à vivência do real. O psicólogo é o profissional habilitado para lidar com as questões humanas dos mais diversos tipos. Através de muito estudo e técnica, conseguimos, em parceria com a disponibilidade do próprio paciente, dar-lhe a autonomia necessária para que possa fazer as escolhas mais acertadas e possíveis diante do que se lhe impõe.
Somos seres humanos sujeitos a emoções e impulsos como qualquer mortal, porém amparados pelo peso da ciência, que elegantemente nos garante limites seguros para intervenção dentro da relação terapêutica e ferramentas para que conduzamos o cuidar da maneira mais isenta que nos é possível. Supervisão de um profissional com mais estrada de clínica psicológica mais a terapia pessoal nos respaldam diante dos desafios de lidar com o humano que ressoa não só no outro, mas em nós mesmos.
Fui sucinta ao descrever a minha responsabilidade como profissional, mas fato é que o psicólogo não vai, de modo algum, por mais acolhedor que seja o seu trabalho, fazer as vezes de amigo: não vai consolá-lo apressadamente, ser serviçal com alguém ou dirigirlhe palavras jocosas com o intuito de evitar sentimentos dolorosos. Além de improdutivo, impede que o sujeito entre em contato com experiências de tristeza, raiva ou solidão, por exemplo. Ser sujeito é abraçar a sua própria completude, é amar a sua luz, mas sem deixar de abraçar as suas sombras.
A psicoterapia tem por objetivo revisitar e reeditar não só eventos traumatizantes, mas qualquer outra questão inacabada ou que desperta no sujeito interrogações ou inquietações. Não quero de algum modo minimizar a importância afetiva do amigo em nossas vidas; vários estudos vindos de grandes universidades nos atestam a importância da amizade em nosso bem-estar.
Para um bom chope no barzinho, chame o amigo. Caso queira encontrar-se consigo mesmo (a), procure um psicólogo.
Até a próxima!
Fernanda Relva é psicóloga clínica, graduada pela Universidade Federal Fluminense, pós-graduanda em Teoria Psicanalítica e Prática Clínico-Institucional pela Universidade Veiga de Almeida. Atende seus pacientes somente online, por questões de segurança em virtude da pandemia do novo coronavírus. Nicho de atendimento: mundo feminino, maternidade, abuso sexual, sexualidade feminina, violência contra a mulher, relacionamentos, transtornos de ansiedade, compulsões.
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